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Introdução
O uso de plantas medicinais pela população, como terapia alternativa para o tratamento de diversas doenças, é uma prática comum desde milhares de anos antes de Cristo.
O interesse por produtos medicinais derivados de plantas como fitoterápicos aumentou significativamente em todo o mundo, principalmente com o aparecimento do COVID. Esse interesse é especialmente observado em países desenvolvidos, principalmente em alguns países europeus e nos Estados Unidos.
Estima-se que o mercado global para essa classe de medicamentos tenha atingido 20 bilhões de dólares anualmente. O mercado brasileiro de fitoterápicos ainda é bastante modesto, representando cerca de 261 milhões de dólares americanos. Isso representa menos de 5% do mercado global de medicamentos brasileiros.
A população brasileira possui uma longa tradição no uso de plantas medicinais para o tratamento de diferentes doenças agudas e crônicas sendo o trato gastrointestinal um dos sistemas mais frequentemente tratados com fitoterápicos no Brasil. Desde o uso popular de “chás para o estômago” até medicamentos à base de extratos padronizados, as plantas medicinais desempenham papel importante na cultura terapêutica brasileira.
Contudo, é fundamental compreender que o fígado, órgão responsável pela biotransformação de substâncias, é também o principal alvo de efeitos tóxicos cumulativos provenientes do uso inadequado de ervas. O fenômeno da hepatotoxicidade (lesão no fígado) por plantas medicinais é um problema subdiagnosticado e muitas vezes confundido com outras doenças hepáticas.
🌿 Principais Fitoterápicos utilizados no Brasil para o aparelho digestivo
uso de plantas medicinais para tratar distúrbios digestivos é amplamente difundido na medicina popular brasileira.
Muitas dessas espécies foram incorporadas à Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS (RENISUS) e possuem monografias oficiais publicadas pela ANVISA.
A tabela abaixo sintetiza as principais ervas utilizadas, seus usos tradicionais e a situação de segurança segundo dados técnicos oficiais (ANVISA, RDC nº 26/2014, Farmacopeia Brasileira, OMS).
| Nome popular | Nome científico | Uso tradicional | Situação quanto à segurança e regulamentação |
|---|---|---|---|
| Boldo-do-Chile | Peumus boldus Molina | Dispepsia (dor de estômago), má digestão, estímulo hepático | Contém alcaloides (boldina); seguro em doses curtas, mas pode causar náusea em excesso. Monografia oficial publicada pela ANVISA. |
| Boldo-brasileiro / Falso-boldo | Plectranthus barbatus Andrews | Cólicas, gastrite e azia | Considerado relativamente seguro, mas há confusão com outras espécies (Coleus amboinicus). Não contém boldina; uso controlado e padronizado. |
| Carqueja | Baccharis trimera (Less.) DC. | Gastrite, dispepsia, esteatose hepática leve | Efeitos coleréticos e hepatoprotetores documentados; fitoterápico tradicional no SUS. Contraindicado em gestantes devido à ação uterina. |
| Camomila | Matricaria chamomilla L. | Espasmos gastrointestinais, gastrite leve, dispepsia funcional | Geralmente segura, reconhecida pela OMS e Farmacopeia Brasileira. Uso moderado. Possível alergia cruzada em pessoas sensíveis a Asteraceae. |
| Erva-doce | Foeniculum vulgare Mill. | Gases, cólicas e digestão lenta | Segura em uso alimentar e medicinal. Contém anetol e fenchona; evitar em doses elevadas por longos períodos. Fitoterápico reconhecido pela ANVISA. |
| Espinheira-santa | Maytenus ilicifolia Mart. ex Reissek | Gastrite, úlcera gástrica e dor epigástrica | Fitoterápico registrado pela ANVISA (monografia PM039-00). Reconhecida como tratamento auxiliar em gastrite e dispepsia. Evitar uso na gravidez e lactação. |
| Hortelã-pimenta | Mentha piperita L. | Náuseas, cólicas e digestão | Segura, efeito antiespasmódico e carminativo. Não recomendada para refluxo gastroesofágico grave. Produto padronizado na Farmacopeia Brasileira. |
| Confrei (erva perigosa) | Symphytum officinale L. | Gastrite e cicatrização gástrica (uso popular) | Tóxica e proibida para uso interno pela ANVISA (RDC 26/2014). Contém alcaloides pirrolizidínicos hepatotóxicos. Somente uso tópico controlado. |
As espécies espinheira-santa, carqueja e boldo-do-Chile são as mais empregadas clinicamente, com evidências farmacológicas e regulamentação oficial.
A espinheira-santa é um caso exemplar de integração entre o saber popular e o sistema regulatório brasileiro — reconhecida pela Farmacopeia Brasileira, com monografia de qualidade, padronização química (mínimo de 2% de taninos) e uso aprovado para gastrite e úlcera gástrica.
Confrei e espécies do gênero Senecio representam o lado oposto: plantas amplamente usadas na tradição popular, mas com toxicidade hepática comprovada, sendo proibidas para uso oral.
⚠️ Plantas hepatotóxicas de uso popular no Brasil
| Nome científico / popular | Parte utilizada / tipo de produto | Efeitos hepáticos descritos | Situação regulatória (ANVISA / OMS) |
|---|---|---|---|
| Symphytum officinale (Confrei) | Folhas e raízes usadas em chás ou xaropes | Hepatite veno-oclusiva, fibrose e cirrose em uso crônico | Uso interno proibido (RDC nº 26/2014, ANVISA); uso tópico permitido e controlado |
| Senecio brasiliensis (Maria-mole, Erva-de-são-joão-brasileira) | Folhas e flores usadas como chá medicinal | Hepatite tóxica e necrose hepatocelular; intoxicações em humanos e animais | Proibido para uso medicinal interno; reconhecida toxicidade hepática |
| Crotalaria retusa e outras Crotalaria spp. (xique-xique, rabo-de-raposa) | Folhas e sementes em infusões e uso rural tradicional | Hepatite tóxica aguda, necrose hepática, veno-oclusão | Uso proibido para consumo; alto risco hepático e pulmonar |
| Heliotropium indicum (Fedegoso-de-flor-roxa) | Folhas usadas em “chá do fígado” | Lesões hepáticas colestáticas, hepatite tóxica | Uso medicinal interno não recomendado; potencial hepatotóxico reconhecido pela OMS |
| Aloe vera (L.) Burm.f. (Babosa) | Gel purificado (tópico); látex e suco integral (oral) | Uso tópico seguro; via oral pode causar elevação de AST/ALT, hepatite tóxica reversível | Uso tópico permitido e seguro; uso oral deve ser padronizado e supervisionado (OMS, EMA, ANVISA) |
| Produtos “detox” com Aloe vera | Misturas variáveis com látex não purificado | Suplementos líquidos e cápsulas | Casos relatados de hepatotoxicidade e colestase |
Observações técnicas:
- O látex do Aloe vera, rico em antraquinonas, apresenta efeito laxativo potente, mas também risco hepatotóxico quando ingerido de forma não padronizada.
- Confrei (Symphytum officinale) e Senecio spp. são as principais causas de hepatite veno-oclusiva induzida por plantas relatadas na América do Sul.
- Apenas o gel purificado de Aloe vera (sem aloína) é considerado seguro para uso tópico.
Na dúvida sempre procure um profissional médico
Deve-se sempre avaliar histórico hepático antes de prescrever ervas digestivas.
Desencorajar o uso de “chás caseiros do mato” de origem duvidosa.
Verificar registro ANVISA (fitoterápico padronizado) antes da compra.
Orientar que “natural” não é sinônimo de “sem efeitos colaterais”.
Para saber mais:
Hepatotoxicity due to herbal dietary supplements: Past, present and the future.
doi: https://doi.org/10.1016/j.fct.2022.113445.
Medicinal plants in Brazil: Pharmacological studies, drug discovery, challenges and perspectives.
DOI: http://dx.doi.org/doi:10.1016/j.phrs.2016.01.021