Fitoterápicos e o aparelho digestivo: Entre o alívio e o risco para o fígado

Everton Berger

Gastroenterologista

Tempo de leitura de 5 minutos.

Introdução

O uso de plantas medicinais pela população, como terapia alternativa para o tratamento de diversas doenças, é uma prática comum desde milhares de anos antes de Cristo.

O interesse por produtos medicinais derivados de plantas como fitoterápicos aumentou significativamente em todo o mundo, principalmente com o aparecimento do COVID. Esse interesse é especialmente observado em países desenvolvidos, principalmente em alguns países europeus e nos Estados Unidos.

Estima-se que o mercado global para essa classe de medicamentos tenha atingido 20 bilhões de dólares anualmente. O mercado brasileiro de fitoterápicos ainda é bastante modesto, representando cerca de 261 milhões de dólares americanos. Isso representa menos de 5% do mercado global de medicamentos brasileiros.

A população brasileira possui uma longa tradição no uso de plantas medicinais para o tratamento de diferentes doenças agudas e crônicas sendo o trato gastrointestinal um dos sistemas mais frequentemente tratados com fitoterápicos no Brasil. Desde o uso popular de “chás para o estômago” até medicamentos à base de extratos padronizados, as plantas medicinais desempenham papel importante na cultura terapêutica brasileira.

Contudo, é fundamental compreender que o fígado, órgão responsável pela biotransformação de substâncias, é também o principal alvo de efeitos tóxicos cumulativos provenientes do uso inadequado de ervas. O fenômeno da hepatotoxicidade (lesão no fígado) por plantas medicinais é um problema subdiagnosticado e muitas vezes confundido com outras doenças hepáticas.

🌿 Principais Fitoterápicos utilizados no Brasil para o aparelho digestivo

uso de plantas medicinais para tratar distúrbios digestivos é amplamente difundido na medicina popular brasileira.
Muitas dessas espécies foram incorporadas à Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS (RENISUS) e possuem monografias oficiais publicadas pela ANVISA.

A tabela abaixo sintetiza as principais ervas utilizadas, seus usos tradicionais e a situação de segurança segundo dados técnicos oficiais (ANVISA, RDC nº 26/2014, Farmacopeia Brasileira, OMS).

Nome popularNome científicoUso tradicionalSituação quanto à segurança e regulamentação
Boldo-do-ChilePeumus boldus MolinaDispepsia (dor de estômago), má digestão, estímulo hepáticoContém alcaloides (boldina); seguro em doses curtas, mas pode causar náusea em excesso. Monografia oficial publicada pela ANVISA.
Boldo-brasileiro / Falso-boldoPlectranthus barbatus AndrewsCólicas, gastrite e aziaConsiderado relativamente seguro, mas há confusão com outras espécies (Coleus amboinicus). Não contém boldina; uso controlado e padronizado.
CarquejaBaccharis trimera (Less.) DC.Gastrite, dispepsia, esteatose hepática leveEfeitos coleréticos e hepatoprotetores documentados; fitoterápico tradicional no SUS. Contraindicado em gestantes devido à ação uterina.
CamomilaMatricaria chamomilla L.Espasmos gastrointestinais, gastrite leve, dispepsia funcionalGeralmente segura, reconhecida pela OMS e Farmacopeia Brasileira. Uso moderado. Possível alergia cruzada em pessoas sensíveis a Asteraceae.
Erva-doceFoeniculum vulgare Mill.Gases, cólicas e digestão lentaSegura em uso alimentar e medicinal. Contém anetol e fenchona; evitar em doses elevadas por longos períodos. Fitoterápico reconhecido pela ANVISA.
Espinheira-santaMaytenus ilicifolia Mart. ex ReissekGastrite, úlcera gástrica e dor epigástricaFitoterápico registrado pela ANVISA (monografia PM039-00). Reconhecida como tratamento auxiliar em gastrite e dispepsia. Evitar uso na gravidez e lactação.
Hortelã-pimentaMentha piperita L.Náuseas, cólicas e digestãoSegura, efeito antiespasmódico e carminativo. Não recomendada para refluxo gastroesofágico grave. Produto padronizado na Farmacopeia Brasileira.
Confrei (erva perigosa)Symphytum officinale L.Gastrite e cicatrização gástrica (uso popular)Tóxica e proibida para uso interno pela ANVISA (RDC 26/2014). Contém alcaloides pirrolizidínicos hepatotóxicos. Somente uso tópico controlado.

As espécies espinheira-santa, carqueja e boldo-do-Chile são as mais empregadas clinicamente, com evidências farmacológicas e regulamentação oficial.

A espinheira-santa é um caso exemplar de integração entre o saber popular e o sistema regulatório brasileiro — reconhecida pela Farmacopeia Brasileira, com monografia de qualidade, padronização química (mínimo de 2% de taninos) e uso aprovado para gastrite e úlcera gástrica.

Confrei e espécies do gênero Senecio representam o lado oposto: plantas amplamente usadas na tradição popular, mas com toxicidade hepática comprovada, sendo proibidas para uso oral.

⚠️ Plantas hepatotóxicas de uso popular no Brasil

Nome científico / popularParte utilizada / tipo de produtoEfeitos hepáticos descritosSituação regulatória (ANVISA / OMS)
Symphytum officinale (Confrei)Folhas e raízes usadas em chás ou xaropesHepatite veno-oclusiva, fibrose e cirrose em uso crônicoUso interno proibido (RDC nº 26/2014, ANVISA); uso tópico permitido e controlado
Senecio brasiliensis (Maria-mole, Erva-de-são-joão-brasileira)Folhas e flores usadas como chá medicinalHepatite tóxica e necrose hepatocelular; intoxicações em humanos e animaisProibido para uso medicinal interno; reconhecida toxicidade hepática
Crotalaria retusa e outras Crotalaria spp. (xique-xique, rabo-de-raposa)Folhas e sementes em infusões e uso rural tradicionalHepatite tóxica aguda, necrose hepática, veno-oclusãoUso proibido para consumo; alto risco hepático e pulmonar
Heliotropium indicum (Fedegoso-de-flor-roxa)Folhas usadas em “chá do fígado”Lesões hepáticas colestáticas, hepatite tóxicaUso medicinal interno não recomendado; potencial hepatotóxico reconhecido pela OMS
Aloe vera (L.) Burm.f. (Babosa)Gel purificado (tópico); látex e suco integral (oral)Uso tópico seguro; via oral pode causar elevação de AST/ALT, hepatite tóxica reversívelUso tópico permitido e seguro; uso oral deve ser padronizado e supervisionado (OMS, EMA, ANVISA)
Produtos “detox” com Aloe veraMisturas variáveis com látex não purificadoSuplementos líquidos e cápsulasCasos relatados de hepatotoxicidade e colestase

Observações técnicas:

  • O látex do Aloe vera, rico em antraquinonas, apresenta efeito laxativo potente, mas também risco hepatotóxico quando ingerido de forma não padronizada.
  • Confrei (Symphytum officinale) e Senecio spp. são as principais causas de hepatite veno-oclusiva induzida por plantas relatadas na América do Sul.
  • Apenas o gel purificado de Aloe vera (sem aloína) é considerado seguro para uso tópico.

Na dúvida sempre procure um profissional médico

Deve-se sempre avaliar histórico hepático antes de prescrever ervas digestivas.

Desencorajar o uso de “chás caseiros do mato” de origem duvidosa.

Verificar registro ANVISA (fitoterápico padronizado) antes da compra.

Orientar que “natural” não é sinônimo de “sem efeitos colaterais”.

Para saber mais:

Hepatotoxicity due to herbal dietary supplements: Past, present and the future.
doi: https://doi.org/10.1016/j.fct.2022.113445.

Medicinal plants in Brazil: Pharmacological studies, drug discovery, challenges and perspectives.
DOI: http://dx.doi.org/doi:10.1016/j.phrs.2016.01.021

Dr Everton Berger Médico Gastroenterologista CRM 13.989 | RQE 11.578

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